Escravos negros em terreiro de café de fazenda no Vale do
Paraíba (foto: Marc Ferrez)
Fonte: Agência Senado
Ricardo Westin
Colaborou: Arquivo do Senado
Publicado em 2/9/2019
Dois marcos das relações entre o Brasil e a China fazem
aniversário. O rompimento dos laços diplomáticas completa 70 anos — em
1949, a revolução comunista liderada por Mao Tse-tung levou o presidente Eurico
Gaspar Dutra a cortar a ligação com o país asiático. O reatamento, por sua vez,
completa 45 anos — em 1974, o presidente Ernesto Geisel passou por cima
das divergências ideológicas e restabeleceu os contatos oficiais com Pequim.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em
Brasília, mostram que as relações entre os dois países remontam à época de dom
Pedro II. Em 1880, o governo imperial enviou diplomatas ao outro lado do mundo
para assinar um tratado bilateral por meio do qual o Brasil esperava substituir
os escravos negros por “semiescravos” chineses.
Nesse momento, a escravidão dá claros sinais de que está com
os dias contados. Desde 1850, a Lei Eusébio de Queirós proíbe o tráfico de
africanos. Desde 1871, a Lei do Ventre Livre garante a liberdade aos bebês
nascidos de escravas. Nesse contexto de mudança, os fazendeiros do Império,
temendo que o encolhimento da mão de obra leve a lavoura de café ao colapso,
pensam nos “chins” como solução.
— O trabalhador chim, além de ter força muscular, é sóbrio,
laborioso, paciente, cuidadoso e inteligente mesmo — argumenta no Senado, em
1879, o primeiro-ministro Cansanção de Sinimbu. — Por sua frugalidade e hábitos
de poupança, é o trabalhador que pode exigir menor salário. Assim, deixa maior
soma de lucros àquele que o tem a seu serviço. É essa precisamente uma das
razões por que devemos desejá-lo para o nosso país.
O primeiro-ministro tenta convencer os senadores a aprovar a
liberação das verbas necessárias para o envio de uma missão diplomática à China
para negociar o tratado. A escassez de braços na lavoura preocupa o governo
porque o café para a exportação é a maior fonte de renda do Brasil.
A viagem que os diplomatas teriam que fazer seria bem longa,
a bordo de um navio de guerra da Marinha, o que demandaria dos cofres imperiais
120 contos de réis. Não é pouco dinheiro. O valor é igual aos orçamentos
somados da Biblioteca Pública, do Observatório Astronômico, do Liceu de Artes e
Ofícios, da Imperial Academia de Medicina e do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro para todo o ano de 1879.
Os chineses, como avisa Sinimbu, seriam assalariados. Na
prática, contudo, o que os fazendeiros brasileiros desejam é reproduzir a
experiência de países como Estados Unidos, Cuba e Peru, que vêm explorando os
chineses de uma forma tal — com pagamentos irrisórios, jornadas extenuantes,
ambientes insalubres e castigos físicos — que os trabalhadores ficam na tênue
fronteira entre a liberdade e a escravidão.
Levas de trabalhadores abandonam o império chinês, entre
outras razões, por causa da superpopulação (370 milhões de habitantes, contra
10 milhões no Brasil), da escassez de alimentos e da crise decorrente da
derrota nas Guerras do Ópio.
No Brasil, nem todos recebem bem a ideia da imigração
chinesa. Parte da sociedade sente temor e repulsa diante da possibilidade de
encontrar homens de olhos puxados, cabelos trançados a partir da nuca e roupas
exóticas transitando pela fazendas e cidades do Império.
Reverberando o pensamento desse grupo, há senadores e
deputados que se manifestam contra a celebração do tratado com a China. O
Arquivo do Senado preserva os discursos proferidos a esse respeito no
Parlamento. Muitos deles são abertamente racistas e xenófobos.
Camponês do norte da China (foto: Library of Congress)
— Senhores, não sei que fatalidade persegue este Império,
digno de melhor sorte: ou há ter africanos, ou há de ter chins? — critica o
senador Dantas (AL). — Li numa memória acerca da colonização chim que diz ser
essa uma raça porca que muda de roupa só duas vezes ao ano. Pois, quando as
nossas leis estabelecem prêmios àqueles que trouxerem para o Império boas raças
de animais, tratam de mandar buscar rabichos e caricaturas de humanidade?
— Depois de tantos anos de independência e de estarmos mais
ilustrados a respeito da marcha dos negócios do mundo, havemos agora de voltar
atrás e introduzir nova raça, cheia de vícios, de físico amesquinhado, de moral
abatido, que não tem nada de comum aqui e não tem em vista formar uma pátria e
um futuro? Havemos de introduzir semelhante raça somente para termos daqui a
alguns anos um pouco mais de café? — questiona o senador Junqueira (BA).
— Venham muitos chins, para morrerem aos centos, aos
milhares — ironiza o senador Escragnolle Taunay (SC). — Deles, ficará apenas o
trabalho explorado pelos espertalhões. É um trabalho que se funda na miséria de
quem o pratica e no abuso de quem o desfruta. Que erro colossal! Que cegueira!
Para Taunay, é difícil que os fazendeiros consigam se
adaptar aos asiáticos:
— Acostumado à convivência branda e amistosa dos antigos
escravos brasileiros, fazendeiro nenhum será capaz de suportar o contato dos
chins. Seus vícios se exacerbam com o uso detestável e enervante do ópio. Só o
cheiro que os chins exalam bastará para afugentar o fazendeiro mais
recalcitrante.
Trabalhadores chineses da região da Manchúria (foto: Library
of Congress)
Nessa época, estão em voga no mundo ideias racistas
disfarçadas de teorias científicas. Segundo o racismo pseudocientífico, os
brancos formam a raça superior e os negros, a raça inferior. No meio deles,
como raça intermediária, surgem os amarelos ou orientais. Entre os teóricos da
hierarquização das raças, estão Arthur de Gobineau, Ernest Renan e Gustave Le
Bon. Gobineau, diplomata francês que serviu no Rio de Janeiro, concluiu que o
Brasil era um país atrasado por causa da miscigenação entre brancos e negros.
— A ciência da biologia ensina que, nesses cruzamentos de
raças tão diferentes, o elemento inferior vicia e faz degenerar o superior —
diz o senador Visconde do Rio Branco (MT), alertando os colegas para o “perigo
amarelo”.
De acordo com o historiador Rogério Dezem, professor do
Departamento de História e Cultura Brasileira da Universidade de Osaka, no
Japão, o preconceito dos brasileiros tinha origem nos Estados Unidos, onde os
trabalhadores chineses haviam chegado décadas antes e eram odiados — mas não
por questões de raça, e sim de mercado de trabalho:
— Na construção de ferrovias nos Estados Unidos, por
exemplo, sempre que os imigrantes europeus faziam greve exigindo melhores
salários e condições de trabalho, os patrões recorriam aos chineses, que
aceitavam pagamentos mais baixos para dar continuidade ao serviço interrompido.
Era uma espécie de concorrência desleal. Os chineses, então, começaram a ser
odiados, e surgiu a história de que eram sub-raça, degenerados, perigosos. O
governo americano, diante das pressões, chegou a proibir a entrada de novas
levas de imigrantes chineses. Esse mesmo ódio acabou chegando ao Brasil,
principalmente por meio da imprensa, e aqui eles logo passaram a ser vistos
como sujos, ladrões de galinha, viciados em ópio. Foi uma visão deturpada que
se instalou no inconsciente coletivo dos brasileiros.
Revista reforça imagem negativa de imigrantes chineses
(imagem: Biblioteca Nacional)
Em 1878, o governo brasileiro organiza o Congresso Agrícola,
no Rio de Janeiro, para discutir os rumos da cafeicultura diante do iminente
fim da escravidão. O sonho dos fazendeiros é substituir os escravos negros por
trabalhadores originários da Europa. As equivocadas teorias racistas levam à
crença de que, para o bem do país, é necessário “embranquecer” a população
brasileira.
— Formar uma raça que seja varonil e tenha grande
desenvolvimento e expansão é hoje uma questão que está ocupando os estadistas
em toda parte do mundo. Devemos, pois, garantir o futuro do país por meio do
trabalho de raças inteligentes, robustas e cristãs — afirma, no Senado, o
senador Junqueira.
Até mesmo o deputado Joaquim Nabuco (PE), expoente da luta
pela abolição da escravidão negra, usa a tribuna da Câmara para apontar os
inúmeros “defeitos” que fazem dos chineses uma raça inconveniente para o
Brasil. Nabuco diz temer a “mongolização” do país e uma “segunda edição da
escravatura, pior que a primeira”.
A lavoura não poderia passar a ser cultivada por camponeses
brasileiros, em vez de se recorrer a imigrantes europeus ou chineses? Segundo
Kamila Czepula, historiadora e professora da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UniRio), os cafeicultores descartaram a mão de obra nacional
logo de cara:
— A respeito dos brasileiros brancos, corria a ideia de que
eram preguiçosos, pouco propensos ao trabalho. Também se dizia que cobrariam
valores altos demais para o trabalho na lavoura. Os negros livres, os mestiços
e os índios também estavam fora de cogitação porque eram sinônimo de atraso e
de inferioridade racial. Os imigrantes europeus eram tidos como os tipos
ideais. Além de serem brancos e católicos, considerava-se que eles já estavam
preparados para o trabalho assalariado.
Italianos, espanhóis e portugueses, contudo, não se animam a
se mudar para o Brasil. Eles temem o calor sufocante dos trópicos e o chicote
dos feitores das fazendas. Além disso, desejam possuir terra própria, o que a
estrutura fundiária do Império não permite. Assim, preferem migrar para os
Estados Unidos e a Argentina.
Diante da dificuldade de trazer braços da Europa, o
Congresso Agrícola traça um plano B: espalhar “semiescravos” chineses pelas
plantações de café. A ideia é que sejam utilizados provisoriamente, até os
europeus mudarem de ideia e começarem a vir para o Brasil.
Um dos primeiros parlamentares a defender a contratação dos
chineses para substituir os escravos de origem africana, ainda na década de
1850, é o senador Visconde de Albuquerque (PE). Ele discursa:
— Se queremos nos desembaraçar dos escravos, por que havemos
de rejeitar homens industriosos que não têm o orgulho europeu, que podem
facilitar esse salto entre a escravidão e a liberdade? Senhores, já estive na
China e conheço bem os chins. Dizem que são porcos, e eu não conheço povo mais
asseado. Eles poderão estar com as suas vestes sujas, mas o seu corpo é lavado
e esfregado todos os dias.
Chineses que participaram da construção da Ferrovia
Transcontinental, nos EUA (foto: Amon Carter Museum of American Art)
Até mesmo os defensores da imigração asiática acabam
recorrendo a argumentos pouco lisonjeiros para os chineses. O senador Visconde
de Albuquerque prossegue:
— Dizem que os chins vêm amesquinhar a nossa raça, mas não
estão aí os nossos índios? Qual de nós não gosta muito de ter um desses índios
para o seu serviço? E isso piora a nossa raça? Vejam que tememos raça chim e
não tememos a raça preta! Os chins não nos vêm perturbar a ordem doméstica.
Pelo contrário, são muito humildes, servem muito, trabalham. São até excelentes
cozinheiros. Não são revolucionários, não têm pretensões. Acho que é uma boa
importação.
O senador Cândido Mendes de Almeida (MA) acrescenta:
— São sóbrios, infatigáveis e econômicos. Sendo
materialistas, só visam o lucro. Além de materialistas, são educados sob o
regime autoritário o mais severo que lhes impõe desde o nascer. É com esse
espírito de ordem que trabalham.
Em discurso no Senado, o primeiro-ministro Cansanção de
Sinimbu procura tranquilizar o Império garantindo que não há risco de
“abastardamento das raças” do Brasil porque os chineses não ficarão para sempre
aqui:
— Ainda que venha grande número de trabalhadores asiáticos,
é manifesto que eles nutrem sempre a intenção de voltar para o seu país. Eles
levam tão longe o amor ao solo da pátria, que nos contratos que costumam
celebrar até estipulam que os seus cadáveres serão remetidos para a terra
natal. Isso prova que não é de prever que queiram fixar-se definitivamente
entre nós.
Após muitas discussões, o Senado e a Câmara aprovam em 1879
a liberação dos 120 contos de réis para que a missão diplomática vá à China. Em
1880, pela primeira vez, um navio brasileiro chega ao outro lado do mundo e,
meses depois, retorna ao Rio de Janeiro e completa a volta no planeta.
Na cidade de Tientsin (hoje Tianjin), nos arredores de
Pequim, os diplomatas brasileiros negociam com o vice-rei Li Hung Chang. Quando
ouve que o Brasil tem apenas 58 anos como nação independente, ele demonstra
assombro e conta que seu império existe há 4 mil anos.
O grande empecilho para a migração de chineses para o Brasil
é uma lei local que os proíbe de deixar o seu país sem o consentimento do
imperador. Como quem não quer nada, os diplomatas brasileiros incluem na
minuta de tratado um genérico artigo que dá aos "chins" o direito de
viajarem livremente para o Brasil. Durante as negociações, os enviados de dom
Pedro II nunca vão revelar suas verdeiras intenções. Eles juram que
buscam apenas a amizade do império asiático.
Traumatizado pelo histórico de violências sofridas pelos
súditos chineses nas Américas, o vice-rei reluta em assinar o acordo com o
Brasil, mas acaba cedendo. Após vários meses de negociação, a versão final do
Tratado de Amizade, Comércio e Navegação é finalmente assinada em 1881, garantindo
o livre trânsito de cidadãos entre os dois impérios. É uma vitória da
diplomacia brasileira. Um consulado se instala em Xangai.
O vice-rei Li Hung Chang, que firmou o acordo (foto: Russell
& Sons)
No início de 1882, dom Pedro II profere a fala do trono
(discurso que abre os trabalhos do Senado e da Câmara) sem fazer nenhuma menção
ao tratado com a China. Os fazendeiros entendem a mensagem: o governo não
gastará mais nenhum centavo; se quiserem os “chins”, que os busquem com seu
próprio dinheiro.
Um comerciante chinês chega a desembarcar no Rio de Janeiro
para tratar do transporte dos trabalhadores, mas vai embora sem fechar nenhum
negócio. A maledicência contra os orientais acabou deixando muitos fazendeiros
com um pé atrás. Além disso, a própria China não tem interesse em mandar gente
para o Brasil. Logo em seguida, começa a imigração italiana. A solução chinesa
é, assim, abandonada sem que os trabalhadores de fato venham para o Brasil.
Em 1884, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Soares
Brandão, vai ao Senado para informar a quantas anda a execução do Tratado de
Amizade, Comércio e Navegação assinado três anos antes. Não há muito a dizer.
Constrangido, ele afirma:
— Pela primeira vez, um navio de guerra brasileiro penetrou
nos mares da China e do Japão, mostrando nossa gloriosa bandeira aos governos e
povos daquelas regiões.
Um senador quer saber o que tem feito o recém-nomeado cônsul
em Xangai. O ministro responde:
— Mas que serviço prestar na China? Quero crer que no futuro
possa haver relações que venham demonstrar que não são de todo destituídos de
vantagem e conveniência os serviços de um cônsul na China.
Ele nem imagina que, mais de um século depois, a China se
transformará numa potência econômica mundial e será o maior investidor estrangeiro
no Brasil.
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No fim do Império, Brasil tentou substituir escravo negro por “semiescravo” chinês
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