(*) Antonio Luiz M. C. Costa
Ativistas assumem a função de jornalistas e os jornais os censuram
“Como de costume, os árabes sabiam”, escreveu Robert Fisk sobre o vazamento pelo site WikiLeaks de 391.832 documentos secretos dos EUA sobre a Guerra do Iraque. Como também sabia, minúcias e estatísticas à parte, quem duvidou da palavra de Washington e Londres e buscou informação além dos grandes órgãos da mídia ocidental.
Os EUA diziam não fazer “contagem de corpos”. Pois os documentos vazados detalham 109.032 mortes, 66.081 das quais civis – e é um balanço parcial. Revelam pelo menos 14 assassinatos de civis pelos mercenários da Xe (ex-Blackwater). Iraquianos torturaram e mataram centenas de prisioneiros entregues pelos comandantes estadunidenses, sob seus olhos complacentes. Abusos nas prisões dos EUA prosseguiram após as revelações de Abu Ghraib. De 832 pessoas abatidas em postos de controle dos EUA, apenas 120 eram supostos insurgentes: os demais incluíam famílias e crianças. Vídeos retratam helicópteros a liquidar friamente inimigos rendidos ou civis indefesos. Manuais de tortura.
E barbaridades também do outro lado, como mulheres e meninos com síndrome de Down ou outros problemas mentais usados como mulheres-bomba e homens-bomba: um médico vendeu à Al-Qaeda uma lista de pacientes como esses. A guerra como é, sem edição da CNN e Fox News.
Um precedente foram os “Papéis do Pentágono”, 14 mil páginas de estudos secretos sobre a Guerra do Vietnã vazados pelo analista militar Daniel Ellsberg. Publicado em 1971 pelo New York Times, depois pelo Washington Post, revelou ações secretas que incluíam bombardeios aéreos do Laos, ainda oficialmente neutro, e ataques contra o território do Vietnã do Norte. Os dois jornais enfrentaram uma batalha judicial contra o governo Nixon, que tentou proibir a publicação. Agentes da Casa Branca tentaram desmoralizar Ellsberg, roubando os arquivos de seu psiquiatra e drogando-o para fazê-lo parecer louco. Ellsberg foi processado por traição e absolvido, enquanto seus algozes, punidos por arrombamento. A epopeia gerou o documentário O Homem Mais Perigoso da América, de Judith Erlich e Rick Goldsmith.
É um sinal de decadência da imprensa escrita e da mídia dos EUA que, desta vez, a denúncia só tenha sido possível por intermédio de um site mantido por uma ONG quase clandestina, perseguida pelo Pentágono e pela Casa Branca. Mais grave ainda é que os jornais que protagonizaram o vazamento de 1971 procuram minimizar as revelações ou desmoralizar os responsáveis por sua divulgação, desempenhando o papel que há 40 anos foi de Nixon e seus capangas. E a mídia mais conservadora quer que os responsáveis pelo vazamento sejam executados ou caçados como terroristas, nada menos.
Ao se referir aos arquivos, o New York Times produziu como manchete um primor de contorcionismo: “Detidos se deram pior nas mãos de iraquianos, dizem os arquivos”. E as análises do material, de cuja veracidade ninguém duvida, foram acompanhadas por uma minuciosa tentativa de assassinato da reputação do WikiLeaks e seu editor-chefe, o australiano Julian Assange.
O artigo de John Burns – um dos jornalistas integrados nas tropas, entusiasta da ocupação – retrata Assange pela visão de detratores e “ex-camaradas” que “o estão abandonando pelo que consideram um comportamento errático e autoritário, um certo delírio de grandeza não acompanhado da consciência de que os segredos digitais que revela podem ter um preço em carne e sangue”. De assassinos, torturadores e colaboracionistas, presume-se, embora o WikiLeaks tenha tido muito mais cuidado com suprimir seus nomes do que o Pentágono com evitar os massacres e torturas que protagonizaram. Põe em dúvida sua saúde mental com o empenho do Nixon de 1971: cita detratores segundo os quais “ele não está no seu juízo perfeito” e boatos sobre sua vida pessoal, provavelmente armados pela CIA – como o de que teria violentado duas suecas, acusação pouco verossímil e retirada pelas supostas vítimas.
Em agosto, nas páginas do Washington Post, o comentarista Marc Thiessen afirmou, depois do primeiro vazamento de documentos sobre o Afeganistão, que o WikiLeaks “não é organização noticiosa, mas empresa criminosa” e exigiu que Assange fosse preso antes de “causar mais dano à segurança nacional”. Ante o fato consumado, o editorial fez de conta que não tinha a menor importância: “Os documentos demonstram que a verdade sobre o Iraque já havia sido contada”, mas critica “o enfoque impulsivo e politicamente motivado de Assange, que produz pouca luz, mas causa grandes danos”.
Foram ignoradas as cobranças de investigação da ONU, da Anistia Internacional e do vice-primeiro-ministro britânico Nick Clegg, entre outros. O título mais destacado foi “Papéis do WikiLeaks apoiam alegações de Bush sobre o papel do Irã na Guerra do Iraque” – embora, na verdade, os documentos mostrem que as evidências são mais vagas e ambíguas do que o Pentágono deu a entender.
A CNN fez uma entrevista com Assange que ele interrompeu, indignado com os jornalistas que questionavam boatos sobre sua vida pessoal em vez das informações sobre mais de 100 mil mortes. O editorial da Fox News diz que os funcionários do WikiLeaks precisam ser considerados “combatentes inimigos” e submetidos a “ações não judiciais”. Pede que seus fundos sejam congelados, como se faz com organizações terroristas e que o site seja derrubado pelos hackers do Pentágono. Seu noticiário destacou um deputado que pediu pena de morte para o analista militar Bradley Manning, de 22 anos, preso como suspeito de parte dos vazamentos – ou seja, de ter feito o papel de Ellsberg.
Fora dos EUA foram mais comuns matérias relatando a cumplicidade dos militares com a tortura e os pedidos de investigação, mas viu-se pouca investigação do vasto material além dos pontos destacados pelo próprio WikiLeaks, cuja existência está em risco. O site Moneybookers, que coletava grande parte das doações que lhe eram destinadas, encerrou-lhe a conta, aparentemente a pedido de Washington. O governo sueco negou visto de permanência a Assange, provavelmente pelo mesmo motivo. O jornalismo investigativo nunca foi mais frágil.
(*) Antonio Luiz M.C.Costa é editor de internacional de CartaCapital e também escreve sobre ciência e ficção científica
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