"Nós saímos daqui correndo, deixamos tudo para trás. A gente passou a viver com sofrimento"
Aos 73 anos, a viúva do ex-presidente João Goulart fala dos dias que antecederam o golpe militar, revela como era a vida do casal e lembra a angústia dos anos de exílio
Eliane Lobato (elianelobato@istoe.com.br)
Viúva do ex-presidente João Goulart (1919/1976), Maria Thereza Goulart tem planos frugais para a segunda-feira 31 de março, data da efeméride dos 50 anos do golpe militar que depôs seu marido: viajará para Porto Alegre (RS) com a filha, Denise, e desfrutará do descanso com a família. Há quase meio século, em 1º de abril de 1964, ela, o marido e os dois filhos tiveram de sair às pressas do País em direção ao Uruguai, onde iriam se exilar. Antes de partirem de Porto Alegre, o então deputado federal Leonel Brizola (1922/2004) sugeriu um movimento de resistência ao golpe, mas Jango não consentiu por, entre outras coisas, temer um derramamento de sangue. São momentos tensos que voltam à memória de Maria Thereza, hoje com 73 anos, e provocam tristeza, embora ela lute contra a melancolia que este passado evoca. Arredia a entrevistas, a ex-primeira-dama conversou com ISTOÉ com exclusividade. Contou que escreveu um diário no exílio e que esse material vai virar um livro. Mas só após sua morte. “Antes, não. Acho que há pessoas que não vão gostar. Não tenho coragem de enfrentar isso agora.”
À ISTOÉ, Maria Thereza disse ainda que a famosa foto em que ela aparece ao lado do marido no palanque do histórico comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, não revela seu verdadeiro estado íntimo. A imagem da mulher apontada como uma das dez mais lindas do mundo pela revista “Time” não exprime a apreensão que sentia. “Estava gelada, dura por dentro”, conta. Poucos minutos antes, Jango havia tido queda de pressão. Muitos amigos e correligionários tentaram dissuadi-lo de ir ao comício, mas “ele estava com ideia fixa” e “preparado para o que ia acontecer”, declara ela.
Para a jovem primeira-dama que nunca tinha pisado em um palanque, saber que eles poderiam ser alvo de um atentado a era atemorizante. De fato, houve esse temor, fazendo com que Jango aumentasse o aparato de segurança do evento. Segundo ela, a pouca idade – 24 anos em 64 – ajudou-a a superar as angústias dos momentos que antecederam o golpe. Mesmo assim, desabafou: “Para mim foi tudo muito tenso. O golpe de 64 destruiu a minha família. Tivemos que sair correndo, deixar nossa vida, tudo nosso para trás. Destruiu porque tirou tudo da gente. A gente passou a viver com sofrimento”.
Nascida em São Borja, a quase 500 quilômetros de Porto Alegre, Maria Thereza se casou com Jango aos 17 anos de idade e foi a primeira-dama mais jovem que o País já teve. Após a morte do marido, na Argentina, em 1976, demorou ainda alguns anos para voltar a viver no Brasil e escolheu o Rio de Janeiro, onde ainda mora, perto dos filhos, netos e bisnetos, para passar o resto de seus dias. Apesar de tudo, se declara feliz.
ISTOÉ – Como a sra. vê o País neste momento, 50 anos depois do golpe militar que derrubou seu marido da Presidência?
Maria Thereza Goulart – Sinto, neste momento, o resgate justo da memória do Jango. Isso é mais importante do que o resgate do meu marido. Não espero que ele seja transformado num Deus, não digo que ele tenha sido perfeito. Mas Jango foi um grande patriota, um presidente que amou o País, sobretudo. Pode ter tido seus defeitos, como todos, mas vai ficar guardado na memória com respeito e dignidade.
ISTOÉ – Como a sra. recorda de seu papel naquele momento?
Maria Thereza – Minha presença ao lado dele foi importante, procurei ser companheira. Nunca fui muito política. Vivemos momentos muito assustadores. Meu marido já tinha previsto o futuro, quando saímos para o exílio. Jango já estava marcado pelo golpe. Mas eu até pensei que voltaríamos. Jango estava preparado, achou que era o momento de ele renunciar. Mas, para mim, foi tudo muito tenso. Acho que a minha pouca idade até ajudou a ter forças para viver aquilo. O golpe de 64 destruiu a minha família. Nós saímos daqui correndo, deixamos nossa vida, tudo nosso para trás. O golpe tirou tudo da gente. A gente passou a viver com sofrimento.
ISTOÉ – A sra. não gosta de falar sobre isso?
Maria Thereza – Sou permanentemente convidada para dar entrevistas, participar de eventos, mas te digo, sinceramente, não gosto, evito. Primeiro porque fico triste. Não gosto de ficar falando das tristezas do passado. Segundo porque pensar em tudo o que poderia ter acontecido de pior ainda me assusta. Ajudei a criar meus oito netos, tenho meus dois filhos amados... A vida foi continuando.
ISTOÉ – Depois do golpe, a sra. sabia que iria para o Uruguai e imaginava que viveria lá por tanto tempo?
Maria Thereza – O desterro foi muito cruel, especialmente para o Jango. Mas eu não sabia, com antecedência, o nosso destino. Quando saímos, com as duas crianças, é que me disseram que eu ia morar no Uruguai. Não sabia de nada até então.
ISTOÉ – Como era a vida no exílio?
Maria Thereza – Era difícil porque estávamos longe de todos os que amávamos, das nossas coisas. Eu sentia medo do que pudesse nos acontecer lá. Jango sofria calado, não era de ficar reclamando, fraquejando. Perdi meu pai e minha mãe no Brasil e não pude chegar perto. Era muita tensão, Jango sabia de tudo o que estava acontecendo no Brasil, dos horrores todos. O medo tornou-se um grande inimigo capaz de me confundir entre o ódio e o perdão.
ISTOÉ – A foto da sra. no palanque do comício na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964, mostra uma mulher extremamente bonita e passa a imagem de força, segurança. A sra. se sentia assim?
Maria Thereza – Essa imagem é, na verdade, de apreensão extrema. A foto não mostra tudo. Eu estava com muito medo. Estava gelada, dura por dentro. Nos disseram que poderiam ser jogadas bombas no palanque, no meio das pessoas. Jango teve uma queda de pressão antes, estava muito tenso. Tínhamos noção do que poderia acontecer ali. Mas ele estava firme, preparado. Disseram para ele não fazer aquele comício, mas não adiantavam os conselhos. Ele estava com ideia fixa, estava realmente preparado para o que pudesse acontecer.
ISTOÉ – A sra. subiu em palanque alguma outra vez na vida, além dessa?
Maria Thereza – Nunca mais. Nem antes eu tinha vivido isso. Só subi em palanque naquele comício da Central.
ISTOÉ – Por marcar meio século do golpe militar, este ano a data de 31 de março será diferente para a sra.? Onde pretende passar o dia e o que pretende fazer?
Maria Thereza – Vou para Porto Alegre com minha filha, Denise. Vamos participar de um evento lá. É difícil para mim, porque me emociono. Mas vou, acho que devo e que estou preparada. E só. O resto, será comigo mesma e minha família.
ISTOÉ – No ano passado teve início a exumação do cadáver de Jango. Qual é a sua expectativa do resultado das análises?
Maria Thereza – Poderá nos ajudar a tirar essa dúvida da cabeça. A gente vai sair desse estado de incerteza, questionamentos, espero – embora ache difícil depois de tantos anos. Fui contra isso durante muito tempo. Não queria porque sabia que seria muito doloroso, como de fato foi. Desabei naquele momento, perto do caixão de Jango de novo. Eu sempre achei que ele tinha morrido de infarto. Mas tantas dúvidas foram sendo levantadas, tanta polêmica... Hoje, acho possível, sim, que tenham envenenado algum dos remédios que ele tomava para o coração. Pode ter havido troca do remédio, sim.
ISTOÉ – A sra. acha importantes esses movimentos em busca de um passado? O que pensa do trabalho da Comissão Nacional da Verdade?
Maria Thereza – Muito importante. As pessoas precisam saber o que aconteceu, que fim tiveram os que desapareceram. Vivemos um momento muito importante. Essas medidas já deveriam ter sido tomadas, mas não foram antes dos governos do Lula e da Dilma. A iniciativa foi deles. Ninguém antes foi capaz de tomar uma atitude dessas. Fiquei arrasada com os depoimentos desse militar (coronel Paulo Malhães) que disse as coisas horríveis que faziam com quem lutava contra o regime. Como uma pessoa ainda tem coragem de contar? Mas é importante a gente saber, sim. Mesmo com todo o sofrimento que provoque, especialmente para os familiares.
ISTOÉ – Quando pensa sobre o passado, o que prevalece nas lembranças?
Maria Thereza – A certeza de que fui casada com um homem maravilhoso, que tive uma vida maravilhosa até acontecer o golpe. Sou a mesma pessoa simples. Minha vida mudou muito, mas eu não mudei. O grande mérito, acho, foi ter entendido que o que aconteceu no passado faz parte do passado. Me acho meio provinciana até hoje. Vou a São Borja, onde nasci. Me reencontro comigo lá.
ISTOÉ – Não pretende contar sua história em livro?
Maria Thereza – Olha, vou contar: comecei um diário quando estava no exílio, que vai virar um livro um dia, quando eu não estiver mais aqui neste mundo. Escrevi muitas partes em espanhol. Falo de tudo o que aconteceu, conto tudo. Pedi à minha família para só publicar quando eu não mais estiver aqui, porque pode ser que algumas pessoas não gostem, não tenho muita coragem de enfrentar isso.
ISTOÉ – Recentemente, tentaram reeditar a Marcha da Família com Deus, a exemplo do ocorrido em 1964. O que achou?
Maria Thereza – Ainda tem gente que tem coragem de fazer isso?! Ainda tem tempo? Me disseram que foi um fiasco horrível. Imagino que tenha sido mesmo.
ISTOÉ – Como foi a convivência com o poder?
Maria Thereza – No início foi muito difícil me adaptar. Mas, como ele era vice-presidente, fui aprendendo e contei com a ajuda de pessoas como a dona Risoleta (mulher de Tancredo Neves, político) e Iara Vargas (política e sobrinha do presidente Getúlio Vargas). Elas me orientavam muito, em tudo. Fizemos, eu e Jango, uma viagem belíssima para os Estados Unidos, a convite de (Richard) Nixon (presidente americano). Foi uma vida de glamour, mas eu sabia que tinha que manter os pés no chão, que não podia me deslumbrar para não me perder no meio daquilo. De certa forma, eu já tinha uma relação com o poder de longe porque minha tia era casada com um irmão de Getúlio (Vargas), frequentava o palácio. Olha, o que posso dizer é que o poder chega e passa.
ISTOÉ – Como foi depois da morte de Jango?
Maria Thereza – Meus dois filhos são meus dois grandes amigos, companheiros. Fui avó cedo, com 37 anos. Meu neto, o Cris (Christopher), é uma grande paixão, e me ajudou muito. Ele é o que mais gosta de política.
ISTOÉ – Como é a sua vida no Rio?
Maria Thereza – Gosto muito de viver no Rio. Sou andarilha, faço caminhadas na praia, ginástica, estou sempre em movimento. Quase nem assisto televisão. Estou agora na fase do check up anual, me cuido. E estou preparando uma festa para uma afilhada, filha de uma ex-empregada que é amiga, na Baixada Fluminense, onde ela mora. Serei madrinha de batismo e, por isso, estou fazendo um curso preparatório. A festa será lá, onde vou sempre. Aliás, meu médico veio de Cuba e trabalha lá na Baixada: é o João Marcelo (Goulart, neto). É um grande médico, tenho muito orgulho dele e de todos os outros netos também. Minha família é a minha segurança, meu apoio, alegria.
ISTOÉ – A sra. é vaidosa? Já fez plástica?
Maria Thereza – Sim, mas sem exageros. Mantenho os 46 quilos que tinha quando casei. Mas não me privo de comer coisas de que gosto para manter o corpo. Como tudo o que tenho vontade, até sanduíche. Fiz uma plástica, um minilifting. E estou querendo fazer outra.
ISTOÉ – O Jango era um homem bonito e assediado pelas mulheres, não é? Tinha ciúmes?
Maria Thereza – Não tinha ciúmes. Ele sempre disse: nunca vou deixar de voltar para casa. Mas tinha uma vida fora de casa – e, aliás, vou dizer: isso era muito bom, se ficasse muito tempo não ia dar certo. Casamento é assim. Dentro de casa, Jango era um doce de pessoa, adorava os filhos, era uma festa quando ele chegava. Era um pai maravilhoso
ISTOÉ – A sra. ouvia falar que ele tinha casos extraconjugais?
Maria Thereza – Tinha conhecimento, sim. Mas as pessoas falavam mais do que acontecia. Ele tinha alguns casos, todos os políticos tinham, e muitos ainda têm. Mas ele sempre voltava para casa. Jango era perseguido político e na vida íntima. Diziam que ele tinha várias mulheres. Não eram tantas. Ele gostava, não vou dizer que não. Quando ele era solteiro, sabia que tinha algumas em Porto Alegre, mas eu nunca vi. Falavam de uma moça no Uruguai. Nós morávamos em Punta del Este, eu sabia que tinha essa pessoa, mas nunca vi essa criatura que diziam que o acompanhava a lugares. Nossa vida não foi alterada por causa disso. Mas hoje inventam, publicam falsidades, fartam-se com mentiras que vendem. Falar mal de pessoas, especialmente as que não estão mais aqui para se defender, é muito sério. Tenho horror disso. Infelizmente, vão muito além da verdade e criam fantasias.
ISTOÉ – Falavam da sra. também, não é?
Maria Thereza – Sim. Me arrumaram tantos casos aqui no Brasil... Mas quando eu poderia ter algum caso se vivia cercada por seguranças? Nunca aconteceu nada disso.
ISTOÉ – A sra. não quis se casar novamente?
Maria Thereza – Não. Tive uns três relacionamentos mais sérios, mas acabaram não dando certo. Acho que tudo ficou muito marcado na minha vida, não consegui. Namorei um gaúcho bem mais jovem, e também gostei muito de um canadense, de um banco do Canadá. Mas não consegui. Tudo bem. Tenho uma família maravilhosa, amizades verdadeiras, sou feliz. Sou a Tetê de sempre.
ISTOÉ – O Jango também a chamava de Tetê?
Maria Thereza – Não. Ele me apelidou de Teca. Só ele me chamava assim. Tenho uma foto dele, quando ainda era ministro do Trabalho e namorávamos, com a dedicatória: “Para Teca, com carinho, Jango.”
FOTOS: ISMAR INGBER/AJB, Folhapress; Instituto João Goulart, Agencia RBS
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