A GLÓRIA UNÂNIME DE ARTUR AZEVEDO

Josué Montello

Pode-se dizer, sem receio de erro ou de exagero, que ficamos a dever a um maranhense, o prof. Antônio Martins de Araújo, a façanha singular de ter posto sobre os ombros, para carregá-las sozinho, diligentemente, exemplarmente, a obra e a glória de Artur Azevedo.

Porque ninguém, até hoje havia chamado a si, com a sua competência, a sua probidade e a sua obstinada dedicação, o cuidado de coordenar a obra do mestre de Uma véspera de Reis na unidade de cinco tomos compactos, nos quais reuniu, sob a chancela e o amparo do Instituto Nacional de Arte Cênica, o teatro completo de Artur Azevedo.

Mais que isso: o prof. Antônio Martins de Araújo fez da obra cômica de Artur Azevedo o tema de sua tese de concurso, A palavra e o riso, com dois estudos introdutórios: um, de Sábato Magaldi, Mecanismos lingüísticos de Artur Azevedo; outro, de Wilton Cardoso, Uma quase enciclopédia sobre Artur Azevedo, numa publicação da Editora Perspectiva, em co-edição com a Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 Nos oitenta anos transcorridos após a morte de Artur Azevedo, muita coisa se escreveu sobre ele, notadamente sobre seu teatro. Restava coordenar esse teatro, tecnicamente, exaustivamente, de modo que todo o vasto acervo, compreendendo também os textos inéditos, em poder do filho do escritor, Aluisio de Azevedo Sobrinho, pudesse aparecer de modo merecido.

Eu tive o privilégio de integrar a banca examinadora a que se submeteu o prof. Antônio Martins de Araújo, dando-lhe a distinção a que tinha direito, por sua tese sobre os processos lingüísticos de comicidade no teatro e na sátira de Artur Azevedo.

Volto a reconhecer, na leitura de Artur Azevedo: a palavra e o riso, um documento literário e cultural de excepcional importância, tanto pelas ilações a que chega quanto pelas fontes de que se nutriu como apoio e fundamento de suas conclusões.

 Artur Azevedo, ao contrário do que se possa presumir, não foi um filho da Fortuna, no sentido de ter palmilhado um caminho suave para realizar seu nome, sua obra e seu público. Pelo contrário: desde moço enfrentou reveses a que soube contrapor a constância de sua vocação, por entre sucessivos ataques e mesquinhas agressões.

Ele próprio, num poeminha de circunstância, teve este desabafo, indicativo de seu cansaço na luta obstinada:

Trata de coisa mais prática...
Não sabes que, aqui no Rio,
Pugnar pela arte dramática
É malhar em ferro frio?

Recentemente, revendo as Cartas Literárias de Adolfo Caminha, ali encontrei este juízo sumário, a propósito do melhor dos livros de contos de Artur Azevedo: “Apesar do elevado e justo conceito que tenho Artur Azevedo, não calarei a desagradável impressão que me ficou de seu último livro Contos fora da moda, tanto mais quanto nenhum prejuízo advirá daí para o ilustre escritor, cujo nome já é o que se chama uma glória literária”.

E o mesmo Adolfo Caminha, mais ríspido, após a leitura da defesa dos contos de Artur por Afonso Celso: “A carta em que Afonso Celso paga com inexcedível gentileza a dedicatória dos Contos obrigou-me a uma segunda leitura, mas nada encontrei nestas páginas que destruísse a primeira impressão. Continuei a julgar os Contos fora da moda um livro fora da Arte.”

Assim mesmo. Ao melhor livro de contos de Artur Azevedo. Aquele em que mais se percebe, na apresentação dos personagens, na descrição dos cenários, na concatenação e no desfecho dos episódios, a peça de teatro que se vestiu de conto para sair à rua, notadamente na obra-prima de O plebiscito, que está em todas as antologias.

Chegou mesmo o momento em que o mestre maranhense, que publicava todos os domingos o seu conto no Correio da Manhã, recebeu do jornal a comunicação de que, empenhado em abrir espaço aos novos escritores, para modernizar a literatura, lhe dispensava a colaboração. Ia abrir espaço aos novos talentos, por meio de um concurso.

Veio o concurso, vieram os contos. Autor premiado, no primeiro e no segundo lugar: Arnaldo Gama. E quem era Arnaldo Gama? Artur Azevedo, que bem conhecia esse Arnaldo Gama, logo se apressou em atender à curiosidade do jornal:

- Arnaldo Gama sou eu.

Criara pseudônimo para confundir seus juízes, e ali estava, de volta ao conto de todos os domingos.

Noutra ocasião, acusado por um de seus críticos de ser o responsável pela decadência do teatro brasileiro, com suas paródias, as suas revistas, as suas cenas cômicas, o escritor revidou com veemências: “Em resumo: todas as vezes que tentei fazer teatro sério, em paga só recebi censuras, ápodos, injustiças e tudo isso a seco; ao passo que, enveredando pela bambochata, não me faltaram nunca elogios, festas, aplausos e proventos. Relevem-me citar esta última fórmula de glória, mas – que diabo! – ela é essencial para um pai de família que vive de sua pena.”

Se optasse por um caminho austero, desajustado à natureza de seu temperamento, teria Artur Azevedo construído a obra primacial que realizou esplendidamente? É evidente que não. Molière não escreveria as peças de Racine, a despeito do seu rigoroso domínio do verso. Cada qual para que nasceu. E Artur, realmente, nascera para a cena cômica, o gosto do riso literário, a arte de suscitar a graça nos imprevistos do palco.

Um provérbio chinês nos aconselha fechar a loja, se não sabemos rir. E era rir que Artur Azevedo sabia, mesmo nos poemas líricos em que extravasou as pancadas secretas de seu coração.

Antônio Martins de Araújo, além de ter estudado como ninguém o valor do elemento cômico na obra de Artur Azevedo, traz a lume essa obra, na magistral unidade de todo o seu teatro.

Essa coordenação benemérita põe diante de nós, na massa compacta de vasto acervo literário, uma sólida porção do teatro brasileiro eterno – aquela que, tendo nascido para as luzes e os aplausos de uma noite, resistirá esplendidamente a todas as noites, com sua graça, sua limpidez, seu senso do drama, e numa língua literária que soube alcançar a simplicidade perfeita no seu aparente desalinho.

Os três volumes em que Marcel Hervier reuniu as críticas dos contemporâneos às obras dos grandes escritores franceses, Les écrivains françeis jugés par leurs contemporains, serve-nos de lição ilustrativa para fazer sentir que, tanto na França quanto no Brasil, como em outros grandes países do mundo, a crítica literária, na condição de consciência da literatura, é, freqüentemente, a má consciência.

Artur Azevedo, que chegou mesmo a preconizar a pancadaria como resposta, não precisou chegar a tanto. Rodou o tempo, mudara as gerações, apagaram-se os agravos, e só restou a glória límpida, de que nos rejubilamos.

Cada um de nós, ao subir um pouco, destacando-se dos companheiros, parece que tem por obrigação pagar pelos fracassos alheios. Artur pagou as contas de muitos de seus contemporâneos. Daqueles que, aspirando fazer teatro, sem alcançar os aplauso e a glória, desforravam-se em agressões ao mestre, levando-o a dar este conselho:

Convence-te, leitor: para esses burros
Argumento não há como um sopapo,
Nem resposta melhor que um par de murros.
Mas a verdade é que, tendo dado de público o conselho, num soneto perfeito, não deu os murros nem os sopapos. No que fez muito bem.

Fonte: Jornal do Brasil – Rio de Janeiro, 10/03/1989.

Transcrito do blog Casa de Cultura Josué Montello (http://www.cultura.ma.gov.br) 

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